sábado, 11 de fevereiro de 2017

Meus Filmes Favoritos: "Filhos da Esperança" e seu futuro profético


Uma obra prima absoluta

O ano de 2006 foi importantíssimo para mim, eu tinha 10 anos e fui separado de todos os meus amigos da 3ª série (eu mudei para outro horário, enquanto eles continuaram no mesmo), o que me deixou bem solitário, mas em contrapartida esses momentos sozinhos foram preenchidos por filmes, livros e games.


Eu gostava de cinema, mas não ao ponto de me considerar um amante de cinema (como eu poderia? eu só tinha 10 anos), com essa atenção mais voltada às artes, eu assisti alguns filmes que moldaram meu gosto cinematográfico (e provavelmente meu caráter) como 007: Cassino Royale (uma escolha estranha eu sei, mas ainda um ótimo filme do seu jeito), O Grande Truque e principalmente Filhos da Esperança.


É claro que minha mente infantil dificilmente entendia esses filmes completamente, mas eu adorava assisti-los mesmo assim, pois eles pareciam mais adultos e inteligentes do que estava acostumado. Eu gostava de Filhos da Esperança porque ele parecia real, as imagens não lembravam ficção ou fantasia, mas um noticiário.


Mesmo criança, isso parecia bem evidente.


Assistindo hoje, minha admiração por esse filme só cresce, mas assim como Corpo Fechado, me parece ser um filme lançado na época errada, o futuro de Filhos da Esperança é mais real agora do que nunca.




O diretor mexicano Alfonso Cuarón até então havia dirigido o aclamado "E Sua Mãe Também" e com isso foi chamado para dirigir um "pequeno" filme chamado "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", o que é bem irônico, considerando o alto teor adulto/sexual de seu filme antecessor.


O Prisioneiro de Azkaban é a adaptação favorita de muitos fãs da saga, e isso se deve muito ao diretor, que é indiscutivelmente o melhor que já passou pelos filmes do personagem.

Com o enorme sucesso do terceiro filme do bruxo, Cuarón teve uma boa grana para dirigir seu próximo filme, baseado no livro da falecida autora P.D. James.

Mas antes de começar, devo dizer que apesar de não gostar de falar sobre política neste blog, é praticamente impossível não comentar nada a respeito quando se trata desse filme.



Filhos da Esperança fala sobre um futuro recente (2027) onde todas as mulheres se tornam estéreis (contrário ao livro onde são os homens), e com isso a humanidade está próxima da extinção, houveram várias guerras e boa parte do mundo está em completo caos, com exceção da Grã-Bretanha, apesar de ainda sofrer diversos ataques.

Nesse mundo se encontra Theo (Clive Owen em sua melhor atuação), um ex-ativista desiludido que aceita transportar uma mulher que ficou misteriosamente grávida até um lugar seguro.

A mulher grávida em questão está com um grupo rebelde comandado pela ex-mulher de Theo chamada Julian (Julianne Moore) e seu sócio Luke (Chiwetel Ejiofor), inicialmente Theo está bem relutante em fazer um acordo, mas acontece algo que o faz mudar de ideia.

Uma coisa que gosto no filme é que não existe realmente um lado certo, o governo não é completamente mal e os rebeldes não são completamente bons, todos os personagens tem morais questionáveis, pode se dizer que o único vilão é a situação em que todos se encontram.



Nesse futuro o governo britânico aderiu rigorosas lei anti-imigração, fechando suas fronteiras e deixando apenas quem já estava ali, isso de certa forma até funciona , pois a Inglaterra é um dos únicos lugares onde ainda tem certa ordem, mas ao mesmo tempo isso cria condições desumanas para todo o resto.

Com isso se formam os grupos rebeldes que querem abrir as fronteiras, mas eles estão bem longe de serem heróis, e muitos dos revolucionários estão completamente dispostos a sacrificar vidas inocentes para fazer o que eles acham correto.

Eu gosto dessa ideia, o filme não toma lados porque seria fácil demais demonizar um lado e abraçar o outro, você entende ambos os posicionamentos.

O futuro de Filhos da Esperança não é mega tecnológico, para falar a verdade, ele é como se o mundo tivesse congelado em 2006 e continuasse até 2027, essa falta de esperança está integrada na vida de todos os personagens e de todo o seu cenário.



Acredito que o que escrevi até agora seja o suficiente para convencer quem não assistiu o filme a assistir, pois de agora em diante eu comentarei vários spoilers (basicamente um resumo inteiro do filme) inclusive o final.

Spoilers pesados até o final do artigo a seguir.

O filme já começa chocante, onde o personagem principal chega a uma cafeteria, assiste o noticiário sobre a morte da pessoa mais jovem do mundo, e ao sair o lugar explode, você vê uma mulher segurando o próprio braço arrancado e o titulo do filme aparece, o som da explosão dura uns dois minutos.




Essa é uma forma fenomenal de começar, pois você já sabe que tipo de mundo é o de Filhos da Esperança, ainda mais ao ver que Theo está bem indiferente após isso acontecer, pra ele é mais um dia normal na Londres futurista.

Depois disso ele visita seu amigo Jasper (Michael Caine), um personagem bem descontraído e divertido, o que cria um contraste com Theo, que parece bem desmotivado, você vê que existem formas diferentes de ver o mundo, Jasper ainda é consideravelmente feliz, talvez por ter se isolado da sociedade com sua esposa numa casa na floresta.



Theo é sequestrado por um grupo rebelde (chamado de Os Peixes) do qual fizera parte no passado, comandado por sua ex-esposa Julian (Julianne Moore), ele é convocado para conseguir passaportes para alguns imigrantes com um amigo dele no governo.





Essa cena onde ele fala com o amigo no governo é bem interessante, pois ele está no Ministério de Arte e Cultura, chamado "A Arca das Artes" como a civilização está em colapso, eles reuniram várias obras de arte pelo mundo em um local só.

Existem várias referências a obras de arte no local e muitas delas têm paralelos com a história do filme, por exemplo, no fundo do cenário há uma recriação da capa do álbum "Animals" do Pink Floyd, o disco em questão é uma homenagem ao livro "A Revolução dos Bichos" de George Orwell, conhecido por fazer histórias de governos autoritários, exatamente como o do filme.





Atrás de Theo está a pintura "Guernica" de Picasso, que retrata um ataque durante a Guerra Civil Espanhola, da forma bem abstrata que Picasso é conhecido por fazer (cubismo).





Theo consegue os passaportes e se encontra com Julian e duas imigrantes, uma senhora pagando de rebelde chamada Miriam (Pam Ferris) e uma jovem negra chamada Kee (Clare-Hope Ashitey).



Aparentemente tudo parece estar indo bem, até que eles são atacados por uma multidão, essa é uma sequência eletrizante e genial filmada sem cortes, muito antes de esse tipo de cena ser comum.



Julian leva um tiro no pescoço, o que é bem inesperado, pois Julianne Moore é uma atriz bem famosa e seu nome até está no poster do filme, ela morre em menos de 30 minutos de duração.

Depois desse momento, tem uma cena bem pequena que eu gosto muito, onde Theo se afasta do corpo pela floresta e começa a chorar, você vê que ele não quer que os outros o vejam daquele jeito e que ele é extremamente fechado, até mesmo após a morte de sua ex-mulher, também prova que Clive Owen pode ser um ótimo ator com o diretor certo.



Theo e as imigrantes se juntam na base dos rebeldes, ele descobre que Kee está milagrosamente grávida, numa cena de referências bíblicas, a revelação é feita dentro de um celeiro.




Durante a noite ele também descobre que foi Luke quem planejou a morte de Julian, para poder tomar a liderança da oposição, pois ela queria uma solução pacífica e ele quer uma guerra.

Eu gosto disso pois é bem comum na história da humanidade alguns lideres serem traídos por parecerem "fracos"  e serem substituídos por alguns babacas que provavelmente vão ferrar com tudo.

Então Theo foge dos rebeldes com Miriam e Kee para encontrar um barco chamado Amanhã, onde é dito ser seguro e com cientistas para estudar a gravidez dela.



Eles chegam até a casa de Jasper e passam um bom tempo lá, onde você conhece melhor os personagens, você vê que apesar de ser a última esperança da humanidade, Kee é uma adolescente bem comum, até um tanto idiota (como todo adolescente), e que Theo uma vez fora um forte ativista, mas que perdeu a fé ao ver que os rebeldes não eram tão diferentes do governo, também é revelado que ele e Julian tiveram um filho (chamado Dylan), mas houve uma epidemia que levou a criança.

Eventualmente eles são descobertos pelos rebeldes e conseguem fugir a tempo, mas infelizmente Jasper é assassinado numa cena de quebrar o coração, ainda mais ao você ver que ele manteve o otimismo até o fim, chegando a fazer uma piada enquanto morre.



Antes de morrer, Jasper diz que Theo deve falar com um amigo militar dele, que o levará até uma cidade portuária onde ele pode encontrar o Amanhã. No meio do caminho, ele e as imigrantes param numa creche abandonada e refletem sobre o mundo sem crianças, ao ver que os animais e a natureza estão tomando conta do mundo novamente.

Miriam diz que "Com o som das crianças brincando desaparecendo, o desespero se instalou".

Eles encontram o militar, que os coloca em um ônibus de deportação, nessa cena você vê a forma brutal como o governo trata essas pessoas, com direito a imigrantes em jaulas e algumas execuções em público.

Kee começa a ter contusões durante uma revista no ônibus, Miriam intervem para protege-la e é presa pelos militares.





Agora Theo e Kee andam por uma cidade devastada pela guerra e encontram uma cigana chamada Marischka, que os leva a um apartamento fechado, lá Theo faz o parto em Kee e o bebê finalmente nasce.



Essa provavelmente é a melhor cena de parto que já vi num filme, é tudo bem realista, é bem comum em filmes o bebê vir completamente limpo, mas aqui você vê o sangue e a dor que Kee está passando, é uma cena pesada mas linda ao mesmo tempo.

Após o nascimento do bebê (uma menina), o militar e Marichka vão até o quarto, o militar viu que eles estavam sendo procurados e decide entrega-los a justiça, mesmo após ver o bebê, mas Theo aproveita uma brecha para poder fugir.

Enquanto eles fogem do militar, está acontecendo uma batalha na cidade, e novamente temos um plano-sequência ainda melhor que o primeiro, desta vez seguindo os personagens enquanto a cidade é destruída na guerra entre os rebeldes e o governo.



 Uma curiosidade bem interessante é que essa cena levou 14 dias para ser filmada, pois toda vez que algo dava errado eles tinham que reconstruir todo o cenário, ela finalmente conseguiu ser rodada sem nenhum corte no último dia, e o diretor quase arruinou a cena porque gritou o famoso "corta", mas por uma sorte divina o grito dele coincidiu com uma das explosões e não pode ser ouvida.

Outra referência é a mulher segurando o filho morto na rua, essa cena foi inspirada na fotografia "Kosovo Pieta" de Georges Merillon, a foto em si (que é real) é assustadoramente semelhante a escultura "Pietà" de Michelangelo, que é mencionada anteriormente na cena da Arca das Artes.








O que se segue depois é uma da cenas mais significativas do cinema moderno, os soldados e os rebeldes veem o bebê e por alguns minutos cessam fogo, apenas observando fascinados a primeira criança em anos.



Até que eventualmente começam a se matar novamente, Theo e Kee fogem e finalmente chegam ao porto, onde pegam um bote e começam a remar em direção ao mar, mas infelizmente Theo aparenta ter levado um tiro durante a guerra e começa a sangrar fortemente.





Theo diz para Kee manter o bebê sempre por perto, ela diz que a dará o nome de Dylan (o mesmo nome do filho falecido dele, por ser um nome unissex), ele então fecha os olhos e morre.

Kee se encontra sozinha e desesperada por um tempo, mas no fundo da neblina o Amanhã surge.







O filme termina magistralmente com o som de crianças brincando.



Eu amo Filhos da Esperança (se já não parecesse óbvio), é um filme que assisto todos os anos da minha vida e a cada ano eu gosto ainda mais. É meu filme de ficção cientifica favorito, pois ele é milhares de coisas ao mesmo tempo, é um ótimo drama, uma ótima ficção, um ótimo filme de ação, eu o considero perfeito.

Tenham em consciência que eu vi a primeira vez quando tinha 10 anos, não era algo que eu entendia, mas eu conseguia ver sua beleza , e a cada ano era como redescobrir um filme novo, ora, tem coisas que só notei dessa vez, mesmo tendo assistido incontáveis vezes.

Não é um filme extremamente conhecido, mas é possível ver que ele inspirou muitas obras depois, uma bem clara é o famoso jogo de PS3 "The Last of Us", as semelhanças são muitas, o personagem Joel é bem parecido com Theo, tanto em personalidade quanto aparência.


A história inteira na verdade, onde ele (Joel) precisa levar uma jovem (Ellie) que pode ser a salvação desse mundo apocalíptico, sua parceira Tess (que também é bem semelhante à atriz Julianne Moore) morre bem cedo, e ele é caçado tanto pelo governo quanto os rebeldes (os Vaga-Lumes), a única diferença é que The Last of Us tem zumbis como razão do colapso da sociedade, enquanto Filhos da Esperança é a esterilidade.



Hoje em dia ele é mais importante do que nunca, a comparação com as fronteiras se fechando é bem óbvia e prefiro não discuti-la, só direi que ironicamente o diretor desse filme é mexicano, mas veja as cenas de guerra do filme e compare com as cenas reais da guerra na Síria, é assustadoramente atual.

Por isso muitos dizem que Filhos da Esperança é um filme profético, lembre-se que o vírus da Zika fazem os bebês nascerem com microcefalia, o que é bem similar com a doença de esterilidade do filme.

O pior é que nem precisemos esperar até 2027, parece que o futuro do filme veio 10 anos antes.